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21 agosto 2012

Delírio Emocional de 3º grau: O seco João Bobo de memórias molhadas.

Parte II - Lise monocromática

Das várias tentativas de dominar outros mundos pelas costas, Lise foi a mais sombria. Algo sobre anos de estudante, aviso logo. Tempos de colégio me lembram das mesas, outras crianças, risos e algum idiota resmungando concepções de coisa nenhuma a ouvidos estuprados. Inclusive os meus. A diferença era que eu não gostava nada disso. Mariazinhas pintavam as unhas de carência afetiva, Pedrinhos exibiam tênis como impérios da vaidade decadente. Eu observava do aquário encostado na parede do lado esquerdo, ao fundo da sala zero. Manhãs sem número no Colégio para Filhos de Ricos Frescos da Santa Merda. Os pais? Macabravam violentamente seus filhos-marionetes-empreendimentos bem sucedidos. Aquele teatro das novas tendências do melhor dos mundos hipotéticos em que você quer inserir a sua cria lambida asquerosamente. Sobre toda aquela náusea, que contaminava os azulejos acinzentados, respingava a sua delicadeza. Lise e sua farda igual a todas e tão estupenda. Não havia transpiração, cheiro do salgado da cantina fétida ou de desbotamentos por exaustivas lavagens. Era elegante. Como a origem do seu nome. Francês. Neerlandês. Alemão. Que seja. Sentava do lado direito da sala, na cadeira mais próxima da lousa branca. Distância segura o suficiente para eu observá-la. Apaixonar-me. Ela riscava com canetas de bico fino, atentamente a cada sugestão indecifrável de professor qualquer. O nariz se contorcia em dúvidas, enquanto os olhos se espremiam para checar que nada tinha passado batido por seu estudo voraz.
Cada gesto dela bloqueava minha audição, Mr. Jack. A molecada esbanjava sua panaquice no volume da indiferença. Sequências de abismos cercavam meus olhos, que só queriam olhar para a direita. Adiante. No intervalo, continuava fixo. Hora de respirar o ar frio da cadeira vazia. Por alguns momentos conseguia dissolver algumas situações de casa. Mas eram poucos. Lise era o foco. Lise era a fonte. Lise não me dava espaço para aulas, rezas, padres, santos de barro que quebram com a primeira traquinagem de uma criança levada. Ela sim, era imaculada. Rasgava todos os momentos irrelevantes em detrimento de apenas um. Eterno. Sentar e observar o meu amor, minha namorada à distância. Sem contato. Tato.
Não lembro muito bem que ano era aquele. Mas era de maldição. Os outros alunos não direcionavam atenções a mim em nenhum momento. Muito menos gostaria que fizessem isso. Assim me tornei invisível. No esconderijo perfeito para sempre poder observa-la. Até que Lise deixou a escola. Minha sala. Os abismos. O áudio me atingiu, estridente.
Hoje minhas lembranças captam a redenção sobre Lise incolor. Porque toda a paixão silenciada torna-se vulto. Seus cabelos, passadas décadas, agora são brancos e sombrios. Os olhos cinzas, moribundos. Brilhos ofuscados para a anti-libertação. Dor de sentir toda a cor que um dia te encantou lançada sobre os braços de um quadro monocromático.