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07 novembro 2009

Tardes de Inverno

Tinha seus 102 anos lúcidos e bem vividos. Quando mais jovem era uma grande atriz da época dos musicais. Agora acompanhava as brincadeiras dos bisnetos, sempre sorridente na cadeira de balanço. Era muito querida pelos familiares e amigos. Gostava muito das tardes de inverno, pois é quando o céu ficava mais enigmático e inconstante, mudando suas cores a cada pequeno instante.
 Nas tardes de verão sentava na calçada e ficava conversando com os vizinhos, falando da época em que o teatro tinha prestigio e o francês era a língua mundial. Via-se saudade nos olhos quando assim falava. Os netos perguntavam como haviam sido as guerras, mas ela recusava falar desse assunto. Dizia também que os atores eram mal vistos, embora todos levassem suas famílias para assistir espetáculos. Como queria que o tempo voltasse...
 Quando anoitecia levava a cadeira para dentro, tomava banho, bebia um copo de leite, escovava os dentes e ia dormir. Falava dessa rotina, da idade que não a permitia fazer mais o que quisesse. Mas mesmo assim não reclamava: apenas franzia a testa e abria um grande sorriso aos ver os bisnetos. Sempre fora feliz e não seria agora, tão perto de partir que iria fazer tempestades. Muito pelo contrario, tenho que aproveitar ao máximo esses bons momentos.
 Todo dia assistia o pôr-do-sol no alpendre da cadeira na cadeira de balanço que sempre sentou, desde quando era mais jovem, para ouvir sua mãe contar as fábulas de Esopo e histórias do oriente. Quando olhava para frente via-se um enorme gramado extremamente verde, que se destacava nessas tardes de inverno. A grama molhada fazia cócegas nos pés de quem andava em meio ao sereno.
 Um dia desses teimou em levar os quatro bisnetos para o parque. Quiseram dizer que não fosse, pois estava muito frio e poderia fazer mal para ela. Insistiu até que cederam. E assim foram brincar coma areia do parque, debaixo dos velhos flamboyants, fazendo castelos e imaginando coisas impossíveis. Eram cinco crianças que brincavam.
 Os bisnetos voltaram exaustos para casa e foram descansar cada um em seu quarto. Ela foi tomar banho. Colocou o perfume de alfazema do campo que tanto gostava, o talco no pescoço w foi ao jardim assistir a mais um por do sol. Sentou-se na cadeira de balanço e ficou vendo o céu mudar de cor. Cochilava em meio à gélida brisa de inverno, até dormir profundamente, como quem jamais despertará.


Um comentário:

Levi 'Deco' de Freitas disse...

Lindo... de uma sensibilidade ímpar. Como quem jamais despertará, o fim mais que sonhado por uma atriz. Escrito por algum diretor nostálgico e romântico, ao som da ópera mais cantada no século passado. Parabéns, vampira.