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20 outubro 2008

O avião.

O vôo atrasara duas horas, o que já foi o suficiente para irritá-la. Ana odiava viajar a negócios, principalmente quando as linhas aéreas estavam congestionadas. Quando a chegada do avião foi anunciada pelo som, levantou-se impaciente e dirigiu-se ao portão indicado, entrando no avião e procurando seu assento. Acomodou-se aliviada, afundando-se na poltrona acolchoada que lhe cabia e feliz que sua espera havia chegado ao fim. Nos segundos seguintes outras pessoas entraram no avião e ocuparam as demais cadeiras. Cochilou por quase uma hora e, quando acordou, notou que a poltrona ao seu lado fora ocupada por um homem robusto que aparentava ter quarenta anos. Não se incomodou em cumprimentá-lo. Pouco tempo depois, a aeromoça passou pelo corredor central oferecendo bebidas e petiscos aos passageiros. Ana aceitou um sanduíche de peito de peru defumado e suco de cajá, e o homem ao seu lado pediu o mesmo. Depositou o recipiente no porta-copo da poltrona e concentrou-se no lanche. Depois de duas ou três mordidas, ficou com sede e solveu alguns goles do suco, colocando-o de novo na posição anterior. Notou, porém, que em seguida o homem pegou seu copo e bebeu dois goles, colocando-o de volta como se nada houvesse se sucedido. “Que audácia!”, pensou. Solveu mais do líquido amarelado e, para sua surpresa, o homem repetiu o ato. Já enfurecida pela falta de educação do sujeito, voltou-se para ele em tom de resmungo:
- Se o senhor tivesse a decência de pedir o meu suco, garanto que não o negaria.
- O seu suco está ali, senhora. – Disse, num tom extremamente calmo e dócil, apontando o porta-suco do lado direito de Ana.

17 outubro 2008

Vulto

Foram-se três anos, quatro meses e mais seis noites de lágrimas e soníferos. Respeitável público, este é o circo das perturbações sobrenaturais, habitat do remorso seqüelado. O crime fora executado de forma brilhante, mas a mente flagrou-se, ativando o surto de aprisionamento de si própria. O corpo nunca foi encontrado. Segue a morte dentro do caixote enterrado debaixo da casinha dos cachorros. Porém, os ossos secos permanecem juntos em uma ameaça viva ao seu álibi artificial.
A tortura perpetuamente fora instaurada pela vítima, segura de que o assassino não viveria em paz. O professor não teria vida, mesmo estando vivo. Ensinava de manhã em uma Universidade da capital, sem dar nenhum sinal de alterações em seu humor. Apenas quando voltava para aquela casa, aquele cenário que ainda guarda a cena do crime mais rápido e fino que já existiu, o pânico aflorava-se e o vulto aparecia para mais uma vez lembrar que não desaparecera do local.
O vulto persegue o assustado professor, sem ainda saber o porquê de sua morte, mas totalmente certo de que o mentor do crime não descansará jamais.
O homem deita na rede da varanda, balançando-se e folheando uma revista antiga e olhando de um lado para o outro, esperando alguma manifestação sobrenatural, que já estava se tornando natural. Levantou-se para tomar um copo de água na cozinha e quando estava caminhando pelo extenso corredor, ouviu o barulho da rede balançar fortemente. Olhara espantado para trás, pois não havia sequer ventado naquele momento. Certificou-se de que a rede estava vazia e foi até a cozinha para beber, enfim, a sua água. Quando abriu a geladeira, ouviu um suspiro. Não era o barulho da geladeira, era realmente um suspiro. Olhou para trás e procurou o seu companheiro indesejado. Debaixo da estante de madeira, ao lado do fogão, ali estava o vulto franzino de seu antigo amigo invejado. O desespero de quem não agüentava mais aquilo toda noite o fez apertar tanto o copo de vidro que acabou por quebrá-lo, abrindo um corte profundo em sua mão. Ajoelhou-se, olhou bem para a macabra companhia, disse algumas palavras de ojeriza ao seu infeliz cotidiano noturno, rasgou a garganta com um fino pedaço de vidro.

11 outubro 2008

A Cadeira

A cadeira ali estava, sozinha e orientada. Era imóvel e imutável. Seus movimentos não passavam de fluxos imaginários. Silenciosamente, no canto da parede, ela gritava para si mesma, como e ninguém pudesse ouvi-la, a não ser ela mesma. Já as paredes que a envolviam como um casulo – que esconde o turbilhão constante da metamorfose - eram envelhecidas pelo tempo e pelo vento. Estas paredes passavam por dentro da casa desconhecidas. Essas passavam por reformas e mudanças para que parecessem sempre firmes e fortes para protegerem a cadeira. A sua existência resumia-se em ali existir, em ser, em proteger. Eram simples paredes de concreto, efêmeras e destrutíveis. Eram complexas e pequenas partes juntas, para que, no final, fossem grandes armaduras da cadeira. O ar denso do quarto e sua solitária cadeira nunca haviam visto ou tocado nada, principalmente além da grande porta que as trancavam. Não viam porque não precisavam. Os seus universos eram apenas sua própria existência. No quarto escuro, o limite era apenas o saber de suas coexistências. Estavam intimamente ligadas, mesmo sem se tocarem. A cadeira não poderia ver porque as paredes impediam seu olhar além-parede. As paredes não viam porque o tempo não tinha passado para que a crisálida mostrasse sua essência, pois nesta ainda havia algo inacabado. Pensou a cadeira que nada existia porque não via. E nunca poderia ver: era uma cadeira, apenas. Uma cadeira isolada de todo seu ser. As paredes envelheciam, mas a cadeira continuava jovem. Um dia, essas já não sustentavam mais a si mesmas e desabaram inertes e mortas, como a pétala de uma tênue flor que é machucada pelo vento. Finalmente, pensou a cadeira. Finalmente pode ver tudo, mas nada via. Nem deveria mesmo. Com as paredes ela tudo era, mas sem estas, não passava do nada disperso no tudo.

09 outubro 2008

Vale do Esquecimento I


Existe um lugar, em alguma parte desse mundo, para onde vão todas as coisas que foram esquecidas. Objetos, pessoas, sentimentos. É como aqui, tem árvores, postes, casas, e até pessoas, mas não tem vida. Não há ninguém, realmente, lá. Há um morro, um morro bem alto, que enfeita a paisagem de um cemitério. Os túmulos estão dispostos em qualquer posição, mas não há retrato algum, ou nome, muito menos alguma oferenda. O cinza desfalecido tomava conta das lápides, de modo que era impossível diferenciar quem eram aqueles que jaziam ali. Um cheiro de enxofre insuportável estava impregnado no ar, entretanto, ao redor, o verde da paisagem continuava vivo, como uma compensação, uma alegria para mantê-los sempre esperançosos. Quando atravessei o extenso campo de girassóis no caminho, parando vez ou outra para colher alguns, lembrei-me de como era gostoso encostar o nariz nas pétalas aveludadas e pomposas. O amarelo era o que mais me encantava, era vivo como o sol. Eu estava sozinha. Carregava a minha cesta tão absolutamente próxima a mim, que deixava marcas em minha pele. Era um campo aberto e tudo o que havia eram lápides, pedras de mármore gastas pelo tempo e pela chuva. A grama era alta, mal cuidada, chegava à minha cintura. Eu já estava naquele lugar há muito, muito tempo, por isso estava acostumada ao silêncio absoluto, mesmo que para os outros ele parecesse ameaçador e profundamente infinito. Me aproximei de uma lápide e senti que havia mais alguém ali. Apenas um alguém não, muitos alguéns, pessoas que eu não conhecia, que não fazia idéia de que aparência tinham, do que gostavam, mas sabia que tinham vindo do mesmo lugar que eu. Estávamos, então, ligados de alguma forma. Abaixei-me e depositei um girassol sobre a terra há muito não cavoucada, dura, enjilhada. Sentei e esperei alguma coisa acontecer, e eu sabia que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Senti um gesto de afago, embora áspero. Um homem surgira em minha frente, alto, robusto e com um quê de nobreza, mas sua feição era meiga, exprimia toda uma bondade desajeitada. Acomodou-se na grama, ao meu lado, sorridente, segurando o girassol que eu havia posto em seu lugar de descanso.

- Obrigado.

- Não precisa me agradecer, Robert.

- Você me deu o que todos aqui almejam, algo que eu deveria conseguir por conta própria. Mesmo me sentindo assim, respirar novamente me é um deleite.

- Fico feliz que o tenha ajudado. Gosta de girassóis? Eu colhia muitos quando era menor, costumava enfeitar os jarros da minha casa com eles.

- Girassóis? São bonitos. Amarelos, macios. Refletem luz, esperança, esperança essa que você acabou de me devolver. Gosta de café?


Aquela conversa durou horas. Logo Johns, Marys e Jacobs se juntaram a nós em uma grande roda. Todos nós trocamos experiências e aprendemos uns com outros. Alguns eram velhos, outros novos, não tem idade quando alguém é esquecido. Quando saí, deixei uma flor em cada lápide, para alegrar o dia e a noite daquelas criaturas tão solitárias e tristes, impossibilitadas de sair dali. Todos eles voltaram ao seu descanso, mas eu sabia que poderia vê-los sempre que quisesse, quando me sentisse sozinha ou quando eles próprios clamasse por mim. Porque enquanto eu estivesse naquele lugar, eles não estavam completamente esquecidos.