Social Icons

29 maio 2010

Óbvio, simples e sempre


Em todas as tardes ensolaradas, ia ao jardim. A árvore grande e velha inclinava cada vez mais para perto da janela do meu quarto. Eu achava que as árvores falavam e ouviam como nós, seres humanos. Pensei que fosse até curiosidade que a árvore velha tinha. Eu adorava ver os passarinhos cantando nos longos galhos das velhas mangueiras, mas não gostava de vê-los presos em gaiolas: seu canto alegre e dançante passava a ser melancólico. Sofriam presos ou, pelo menos, eu achava que eles sofriam como nós. Minha mãe dizia: “Deixa de ser ingênua, garota. Bicho é bicho, sempre foi e será assim” e eu resmungava por ter escutado a palavra “sempre”. Eu a detestava, principalmente quando era usada contra meus ideais.
            Quando encontrei um pássaro morto no jardim, fiquei chocada. As penas refletiam a luz do Sol, como se ainda houvesse vida. As asas, abertas, pareciam prontas para voar rumo à liberdade eterna. O bico, entreaberto, era o símbolo de uma última tentativa de cantar uma melodia, porém, fúnebre. Minha mãe sempre errava as palavras quando falava comigo, principalmente quando tentava, com muita paciência, consolar-me: “Uma coisa, meu bem, é óbvio: todo mundo vai virar estrelas, lá no céu, um dia”. Eu amava o desconhecido e tinha repugnância ao óbvio...
            É, meu amigo, este é o último filme a que assistimos: o da nossa doce e ingênua infância porque a Morte sempre nos presenteia ansiosa. Aos meus oitenta e quatro anos, Ela aguarda, silenciosamente, que eu abra seu presente: uma pneumonia. Uma brisa gélida entra pela janela onde a imortal mangueira da minha infância está.
            Eu adorava pássaros, inclusive os periquitos barulhentos. Eram dez, ao total, quando um fugiu. Fiquei preocupada, pois poderiam ficar muito tristes e, até mesmo, morrer. Mas não: continuaram alegres e barulhentos. Comecei a perceber que os animais não tinham sentimentos humanos. Chorei: isso sempre foi assim. Estava crescendo, amadurecendo, embora arduamente. A quebra de vários ideais, as palavras “sempre” e “óbvio”, utilizadas recentemente, as mudanças...
            A Morte, até então silenciosa, ficou impaciente. Eu queria ver o final do filme e Ela, o meu final. Falava blasfêmias, mas eu relutava...
            Era uma tarde de inverno. As arvores sem folhas não alegravam nem entristeciam o jardim, e sim o deixava vazio. Havia passado vários anos e eu estava cansada do senso óbvio dos adultos, dos seus “sempres”... Mas eu era, agora, um deles e não havia nada como impedir isso. Decidi abandonar meus ideais infantis.
            A Morte, ao meu lado, sorria alegremente. Era minha hora. O filme foi cortado e eu já me sentia ofegante e o coração disparou. A árvore velha estava ali, inclinada, talvez dizendo: “Vi você nascendo e agora a vejo morrendo...” A respiração parou e a Morte cobriu-me com o manto da imortalidade, de modo simples, óbvio e como sempre. ***

26 maio 2010

Loucura


Cabelos negros, pele parda e um exímio observador calculista. Sua áurea misteriosa e o fascínio pela solidão o tornavam bastante diferente. O olhar frio era uma análise profunda da alma das pessoas. O seu silêncio era perturbador. Não tinha amigos nem colegas, apenas a solidão. Era apaixonado pela Solidão. Só a queria como sua única companheira...
Detestava multidões, fugia sempre de reuniões, trabalhos em grupo e de colegas. Tudo isso piorou na segunda faculdade. Decidiu tirar férias do trabalho e viajou para sua fazenda. Devido à chuva, demoraram quatro horas para chegar ao destino, mas logo sentiu o cheiro do chão e da areia molhada. Chegou quando já era noite.
Era uma casa pequena: um alpendre suspenso no acide, uma cozinha e um minúsculo banheiro. A casa era cercada pela mata. O açude estava cheio devido às chuvas. As gaivotas repousavam na margem do lago e os carões cantavam alegres. Segundo a cultura sertaneja, quando estes cantam era sinal de chuva. Mas o inverno estava passando depressa.
Três meses passaram rapidamente e a fartura do inverno acabou. A última chuva foi as lágrimas dos agricultores: era época de seca. O açude reduziu sua capacidade para menos da metade de seu volume. Os animais começavam a passar fome, pois o pasto acabara. Os arbustos eram secos e dos animais restavam suas carcaças no solo rachado.
Sentou-se no alpendre e observou uma cena rara e interessante: uma aranha devorando uma mosca, que ao distrair-se por um segundo, caiu na teia do aracnídeo faminto. Pensou, por um instante, que se a seca for prolongada, poderia morrer de fome.
O cerrado suspirava e o bafo quente vinha do poente. O solo, árido, rachava cada vez mais, deixando marcas da violenta seca que atingiu a região.
Alimentando-se de frutas e de alguns animais, passaram-se meses e a seca castigava cada vez mais. Os incêndios ficaram freqüentes e queimavam hectares de árvores frutíferas que prosperavam e, junto delas, os animais. Pouco a pouco a área que circundava a fazenda foi sucumbindo. Adriano começou a ficar desesperado, pois o açude secara e não restara muito das plantações.
A caçada à procura de animais tornou-se uma corrida contra a morte: Adriano sabia que um homem pode passar 28 dias sem se alimentar, mas três dias sem água era morte certa. Os animais foram dizimados e a água potável acabou: restariam apenas três dias de vida. Ficou parado, sem gastar energia, esperando algo que ele não acreditava: que chovesse. Como esperava, a sua força acabaram. A boca ficou seca e logo perdeu a consciência.
Acordou lentamente com o cheiro forte do éter. Tinha desmaiado na rua ao fugir do hospital, onde estava internado na ala psiquiátrica.

19 maio 2010

Delírio Emocional de 3º grau: O seco João Bobo de memórias molhadas.

Parte I – Cash sob meus pés.

Quando Sônia levou meu pai para longe, mamãe comprou um cachorro. Não tinha raça, nem aquele pelo bonito de modelo canino de embalagem de ração. Ele era feio, magro, olhos estufados que exprimiam uma tristeza risível. Lembro da primeira vez que olhei em seus olhos e tive vontade de ignorá-lo, mas suas patas tocaram o mesmo chão podre que as minhas e me veio à impressão de que aquilo poderia dar certo. Lavei seus pensamentos com minhas mãos soadas e ele me abençoou com sua atenção retardada.
Ontem durante a tarde desarrumei uma estante de livros por aqui. Achei um dicionário. É, acho que sinergia não é mais uma palavra desconhecida. Sinergia significa eu e Cash deitados debaixo da minha cama, esperando que Sônia voltasse para a brincadeira noturna. Cash era o seu nome. Mamãe disse que ele parecia com Johnny Cash em seu olhar sisudo de um rebelde entorpecido. Passamos por três anos de ausência juntos, Mr. Jack. Eu, Cash, minha mãe em estado vegetativo olhando pela janela e esperando pelo esquecimento que teimava a vir. Corríamos atrás da chuva, atrás do vento que fugia de nossa inspiração vital ofuscada. Forjada. Ao entrarmos molhados, eu o enxugava com minha toalha preferida e ele lambia meu rosto carente, desidratado em um deserto de afetos. Movíamos todas as vestimentas ativas do guarda roupa imaginário do submundo infantil.
Ao abrir o último livro da estante, vi nossa última foto. Eu e Cash alterados pela luz do sol, dentes à mostra e língua para fora. Nós sabíamos fingir, e ele até fingia melhor. Um momento comercial de família moderna da mãe que é pai sem ser ao menos mãe. Ele era você, Mr. Jack. Ludicamente minha bebida infanto-alcoolica. A vida seguiu e os pneus da caminhonete beijaram suas mandíbulas. Mumifiquei minhas lembranças daquele instante. E as brechas rabiscaram o desconsolo de Cash sob meus pés.

12 maio 2010

Delírio Emocional de 2° grau: Indignação, Abandono e Degradação

Parte V – Playground das aparências ferozes.

Meu prédio é um grande menino gordo e valentão de escola, que mete o dedo no nariz e se acha o máximo jogando a meleca nos óculos do aluno perdedor que não tem como reagir. Daqueles que você não quer ser amigo, mas o respeita devido à corpulência e o olhar ameaçador de quem parece não ter superiores. Do meu andar, vejo as outras estruturas domiciliares. Nanicas perante a envergadura imperiosa. Limo todos os dias aqueles que estão derretendo debaixo do sol, desconsolados, estáticos na sua mediocridade ornamentada pelo preconceito do meu controle remoto. Sinto que posso movimentá-los, sou o grande chefe daqui. Meto-lhes a cabeça na privada quando bem entender! O meu prédio é o menino gordo que cospe na cara da menina feia mesmo também sendo feio, mas só que ele não é “covarde e babaca para viver chorando pelos cantos”. Ele é o cinco estrelas rodeado por feudos parasitados em podridão. Durante o dia, todos olham sua fachada elegante com todos os detalhes modernistas e artísticos de categorias que eu não sei e nem faço questão de conhecer. Ele é o grande menino gordo que toma o lanche e o lugar do magrelo mais novo no balanço do parquinho. Meu prédio, o valentão da Escola das Aparências. À noite, em seu intimo, revela a tristeza não contemplada externamente. A socialite que vive de pensão do marido que saiu de casa por não a suportar, a família em luto pelo suicídio convencionalmente injustificável da filha, o porteiro que não recebe há quatro meses. E de um idiota que faz metáforas aberrantes conversando com uma garrafa de whiskey. Eu faço parte desse grande menino gordo e valentão da escola que volta pra casa e morde a fronha do travesseiro vergonhosamente alegando fraqueza. A diversão exibicionista é paga por prestações introspectivas. Ao dia, distribui-se violência aquisitiva aos perdedores satisfeitos, à noite, apunhala-se com a ferocidade da verdade em carne viva. Eu sou o mascote do meu prédio. A face bisonha do gordo idiota que mantém a aparência de durão para esconder sua covardia de um babaca frustrado antes de tentar qualquer coisa de útil. E por falar em algo útil, voltarei a dormir para estancar pensamentos.

04 maio 2010

Delírio Emocional de 2° grau: Indignação, Abandono e Degradação

Parte IV – 200g de presunto e algo verde.

Uma noite fria e abafada era o que arfava pelas entidades noturnas do mercantil da esquina. Vagavam por algo para o jantar. Eu também. Uma hora tenho que sair daquele apartamento. O momento do dia onde todos se reúnem desvestidos de sua maquiagem e uniformes de play móbil na cidade grande. Passo pelas prateleiras e não consigo pensar no que possa levar para comer. Não sei por que perder tanto tempo escolhendo essas coisas, mesmo quando você tem tempo de sobra para perder e sua barriga não ronca apenas seu maldito cérebro consumista te pede para comprar alguma coisa para agradá-lo. Estava tudo bem enquanto ele estava em pane nesses dias. Agora voltou à atividade e pede por algo mais sucinto do que bolachas de alho. Uma menina com farda de colégio entra pelo corredor. Colégio público. Outras meninas da mesma idade estão na parte de chocolates e doces pensando em como podem zoar a que entrou enquanto ficam apreciando aquilo que decidiram não comer para não serem zoadas por similares. Um velho na sessão de frutas cospe uma uva azeda e seus caroços mastigados de volta à prateleira e acha que ninguém viu, mas eu vi. Está vestido com a blusa de alguma ONG ambiental. No caixa dois, uma velha e uma grávida discutem para decidir qual das duas tem preferência enquanto o cara na cadeira de rodas passa as suas compras apressadamente. A música ambiente é um lixo, preferível apenas o som dos carrinhos. Na noite gritante, os atos dos outros são oferecidos na prateleira do abuso. Peguei um saco de pão e fui pedir presunto no balcão. A fila era enorme, passei quase meia hora olhando para o retrato de funcionário do mês. Com certeza um cara mais legal do que eu. Mas aquele que passava as compras, não. Ele não merecia uma foto estampada nem por um dia. Chega minha vez, pego meus 200g de presunto, pago junto ao saco de pão e tomo o caminho para meu grande sítio dos horrores. Chegando à cozinha, corto alguns pães e quando olho para o presunto vejo que tinham manchas verdes. Não estou nem um pouco a fim de voltar lá. Tenho o número da farmácia na geladeira.