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19 abril 2012

Quando as pautas solitárias amanhecem

Armando todo conceito para o dia de fúria blindado pelas pontas metálicas das esferográficas. Que falham e não te deixam escrever como você gostaria em um fim de noite que sufoca aos ventos. A redação do jornal está vazia e oca, sem delimitadores de zanzados e respingos ásperos de desconcentração. Nós de veludos silenciadores amaciantes do céu lunar brilham nas últimas horas do expediente antes da brisa da manhã imperiosamente glorificar o novo Sol.

Minhas narinas expiram o sangue gasoso dos motores que ardem pelas estradas mal faladas por aí e bem vistas por aqui. Preciso pisar em salinas para aliviar o grito das baixas pressões ameaçadoras que só quer te consumir, arrebatar, transformar em pó. Resíduo inequívoco de últimas chances para o mal nesta linha de pensamento que salta que dança que esmurra que acha que vende que abusa que estipula que não quer que sim que não quer que mate os mortos que ainda andam por aí contando desgraça nas portas sem família, órfãs que sentam à janela em poses semideusas e chamam de gatinhos os leopardos assassinos da savana petrificada.

E este é apenas o início da última cena.

O ar-condicionado gela intrepidamente o ambiente. Todos os outros jornalistas já foram às suas casas, descansar longe da carga horária desumana e árdua a qual são submetidos. Muda-se o clima, até pouco tempo cheio do barulho ensurdecedor, macacadas célebres e a orquestra dos telefones que sempre estão afinados no tom da conversa tecnicamente formal do profissionalismo engessado e acostumado das poses comunicativas teóricas e previsíveis.

Me pego só no Vale das palavras enfermas. As repartições das editorias se fecham sem guardiões para mantê-las intocáveis. O falso clima de paz é instaurado.
Olho para os lados e nenhum colega está ao meu lado ou a raios de distância do grande salão prata, repleto de máquinas. A iluminação fraca e o brilho das máquinas hibernando são os olhos que vigiam meu comportamento ao varar da noite de um Plantão insone de víboras que correm pela Internet e procuram o bote em seu pescoço caso você durma. A concorrência também está sedenta por pautas e você não quer deixá-la com o sabor dos primeiros goles.

Hospital. Comparação mais próxima que se pode envolver a redação de um jornal. Daí se explica os horários loucos, as mulheres que reclamam por seus maridos não chegarem aos lares, crianças que dormem no parapeito da janela esperando o rugir do motor do carro que as afaga os corações e fazem brilhar seus olhos por tratar-se da única salvação prevista para a noite que visita em sublime harmonia com ouvidos, olhos e córrego de pulsante ânsia patriarcal.

Leitos hospitalares não param por um segundo, pois precisam da mão de obra que salva a respiração de muitos. Respiração, não vidas. Muitas já se foram esvaindo, esvaindo. Depressões. Esvaindo. E assim como os hospitais, o habitat jornalístico precisa de pautas que respirem mesmo com personagens mortos em palavra, peito e ordem natural e sobrenatural e inversa ao meio ético da criação. Ligações para a polícia revelam brutalidades que ocorrem durante os horários mais improváveis ao engano, desespero e sofrimento.

Acidentes, estupros, assassinatos. Pais que matam os filhos e admiram o sangue em suas mãos. Sangue que cega sem deixar sentir a medida certa da qualidade visual. Onde o que importa é o valor da moralidade estética trágica, nada cômica, crônica, modernosa como tempos de um blade runner cyber punk convertido pela TV e pelos noticiários encharcados e salgados por lágrimas, álcool, glóbulos que boiam entre olhos. Olhos sangrentos de quem mata olhos sangrentos petrificados de quem morre olhos sangrentos marejados e ansiosos de quem escreve pelo prazer do furo nas entranhas do outro alguém que se importa.

Repórteres ligam para noticiar a última odisseia do dia, os ossos, carne morta e bocas arregaladas que cercam o cotidiano verossímil ao inferno que queima as bordas da sua estrada e você apenas espera chegarem ao centro para então ser consumido em enxofre e ter a garganta selada velada sufocada no sofrimento da vida que se deforma ao teclar de caracteres surrealistas que constroem o quadro das visões celestes e julgadoras do pós-morte diário.

De cabeça cheia, dores em meu corpo e a satisfação de mais um dia vivo em meio aos bombardeios secos que não estouram ao meu lado, nem perto, a distâncias. Mas sempre sangram pelas pontas dos meus dedos. Desligo minha máquina, pego meu bloquinho, minha caneta e o que mais me pertence. Olho para a noite recém-clareada e vejo o que pode ser daí pra frente. Muitas pautas morreram sem serem ao menos tocadas. Amanhecem solitárias, à espera do milagre de uma reportagem para remissão do pecador que não as fez tinta e papel à beira das mudanças dos turnos.

Reapresentação. Cena um.

Um comentário:

Juscelino disse...

PUTA QUE PARIU, André! Vai escrever bem assim lá no portal, mah!