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22 janeiro 2010

Medo



O som das hélices rompeu o silêncio e, quando olhei para cima, vi milhares de pontos pretos, que se moviam rápido. Eu estava com meu gatinho nos braços, estava levando-o ao veterinário para verificar se havia alguma de errado, me preocupava com ele como se fosse meu filho. Meus cabelos esvoaçavam e eu sequer sabia o que estava acontecendo. Foi quando alguma coisa me puxou bruscamente para debaixo de um toldo, na avenida principal. Mü deixou os meus braços e correu.
- Ficou maluca? – disse Mel, e eu sequer imaginava que seria a última frase que ouviria de sua boca.
Nós voltamos ao nosso condomínio, em um bairro de classe média, atônitas. O símbolo nazista estava estampado naqueles aviões e isso não me saía da cabeça. Encontrei alguns amigos sentados numa bancada e me juntei a eles para contar o ocorrido. Quando eu estava prestes a fazê-lo, ouvi um urro. O porteiro havia sido nocauteado por um homem armado, que lhe dera três tiros. Atrás do tal homem, surgiram outros mais, milhares, não consegui contar. Nós corremos, corremos desesperadamente. Havia deles por todos os lados, e nós víamos os outros moradores morrerem, sem que pudéssemos fazer nada. Havia corpos espalhados, amontoados, mutilados. O sangue manchava nossas vestes e o desespero alheio povoava nossas mentes. Eu nunca esqueceria aquelas cenas do teatro do horror. Marcos levara um tiro na perna, uma bala desgovernada, e nós o carregamos nos ombros, todos nós.
Num ato de desespero, entramos no bloco 11. Sabíamos que, quando chegássemos ao topo, não teríamos para onde correr, mas me lembrei do alçapão que dava para a cobertura. Devia ter uma escada por lá, provavelmente. Fiz sinal para que todos se calassem. Mel, até aquele momento, não havia se pronunciado, só chorava, soluçava, tapando a boca para que não a ouvissem. Outros também estavam na mesma. Havia um rastro de sangue deixado pela perna ferida. A porta atrás de Marcos se abrira e eu me assustei, achei que era mais um daqueles homens, mas dela surgiram Layla e Hana, com uma maleta de primeiros socorros.
- Não se preocupem, vamos cuidar do Marcos. – iniciou Layla.
Conhecíamo-nos desde a infância e eu havia esquecido de que aquele era o bloco onde moravam. Estavam sorrindo, eu não havia visto ninguém sorrir desde que aquele inferno começara. Uma porta, ás nossas costas, branca. Não sabia de quem era, mas precisava me esconder, precisava esconder a todos. Entrei, junto com Mel, mas Marcos e as meninas não tiveram tempo de fazê-lo quando três homens armados subiram. Marcos se deixou levar, não queria que me descobrissem e sacrificou-se. Porque somente o meu desejo de viver é que deveria ser atendido? Dois homens conversavam. Dentro da casa alheia, ouvi o barulho dos tiros. Três. Fechei os olhos e pedi que, quem quer que estivesse lá em cima, cuidasse de Marcos e dos outros. Foi só aí que os dois homens nos notaram. Eu estava feliz, achei que eles também estavam fugindo, apesar dos ternos elegantes, mas, ao contrário disso, eles avançaram com um olhar frio em nossa direção. Entendi. Não estavam do nosso lado. Mel agarrou uma arma que estava sobre o sofá, de calibre 12, e acertou em cheio a cabeça do primeiro. O segundo a agarrou pelo pescoço e a sufocou até a morte. Eu me joguei em cima dele, mas não pude fazer nada, apenas cravar minhas unhas em seus olhos até fazê-los sangrar. Ele tombou, desfalecido. Àquela altura, o sangue em abundância era o menor dos meus problemas. Procurei os documentos do último e descobri que era um general, um general de confiança, sua patente indicava isso. Agarrei suas roupas, um pouco manchadas, e sua carteira. Vesti-me como ele, prendi meu cabelo dentro de um chapéu militar e desci. A matança havia se consumado. Não havia um ser vivo ali, milhares de pessoas haviam perdido as vidas e jogadas ao relento. Vi os corpos dos meus amigos, dispostos um ao lado do outro, e uma lágrima sofrida deixou o meu olho direito. Mas eu não podia chorar, não podia deixar que todo o esforço e sacrifício deles fosse em vão, apesar de ainda não ter entendido o porquê de tudo aquilo.
- General? – Uma voz surgiu atrás de mim.
- Sim? – respondi-me sem virar.
- Me mandaram buscá-lo, precisamos do senhor do quartel.
- Tudo bem.
Olhava sem para o lado, para encobrir o meu rosto, enquanto sentia o cheiro da desconfiança impregnada naquele soldado. Ele não conhecia o homem que matei, mas eu não poderia enganá-lo por muito tempo sendo uma mulher.
- Mariana?
Meu pai. Meu pai atravessara a portaria e gritava por mim. Dentro da minha cabeça, o desespero cresceu novamente. Mais do que antes, o meu coração doeu. Na minha mente, gritava em silêncio “Pai, vá embora, eles vão matar você! Eu estou bem, mas vá embora!”, mas não podia dizer nada em voz alta, senão o pegariam. Meus lábios tremeram, eu estava com medo e, pela primeira vez, a dor de perder a pessoa que mais amava me tomou o coração. Eu agüentaria mais um tempo, mentiria e mataria se fosse necessário. Um miado. Olhei para o lado e me deparei com um gatinho, debaixo de um carro. Ele parecia sorrir pra mim. Não parecia saber o que se passava ao seu redor. O soldado também notara o gatinho.
- São tão estúpidos...
Era Mü.

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