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19 maio 2010

Delírio Emocional de 3º grau: O seco João Bobo de memórias molhadas.

Parte I – Cash sob meus pés.

Quando Sônia levou meu pai para longe, mamãe comprou um cachorro. Não tinha raça, nem aquele pelo bonito de modelo canino de embalagem de ração. Ele era feio, magro, olhos estufados que exprimiam uma tristeza risível. Lembro da primeira vez que olhei em seus olhos e tive vontade de ignorá-lo, mas suas patas tocaram o mesmo chão podre que as minhas e me veio à impressão de que aquilo poderia dar certo. Lavei seus pensamentos com minhas mãos soadas e ele me abençoou com sua atenção retardada.
Ontem durante a tarde desarrumei uma estante de livros por aqui. Achei um dicionário. É, acho que sinergia não é mais uma palavra desconhecida. Sinergia significa eu e Cash deitados debaixo da minha cama, esperando que Sônia voltasse para a brincadeira noturna. Cash era o seu nome. Mamãe disse que ele parecia com Johnny Cash em seu olhar sisudo de um rebelde entorpecido. Passamos por três anos de ausência juntos, Mr. Jack. Eu, Cash, minha mãe em estado vegetativo olhando pela janela e esperando pelo esquecimento que teimava a vir. Corríamos atrás da chuva, atrás do vento que fugia de nossa inspiração vital ofuscada. Forjada. Ao entrarmos molhados, eu o enxugava com minha toalha preferida e ele lambia meu rosto carente, desidratado em um deserto de afetos. Movíamos todas as vestimentas ativas do guarda roupa imaginário do submundo infantil.
Ao abrir o último livro da estante, vi nossa última foto. Eu e Cash alterados pela luz do sol, dentes à mostra e língua para fora. Nós sabíamos fingir, e ele até fingia melhor. Um momento comercial de família moderna da mãe que é pai sem ser ao menos mãe. Ele era você, Mr. Jack. Ludicamente minha bebida infanto-alcoolica. A vida seguiu e os pneus da caminhonete beijaram suas mandíbulas. Mumifiquei minhas lembranças daquele instante. E as brechas rabiscaram o desconsolo de Cash sob meus pés.

3 comentários:

Damodara disse...

Nem sei oq comentar, qualquer coisa que eu disser vai ser clichê! Mano o importante é sangrar! o teu trabalho vai ate o sangue! é de fazer nego se sentir mal e bem ao mesmo tempo! Porra! Num para com isso naum.... é uma arte e arte só tem fim.... é! ela naum tem fim! abraços!

roda gigante disse...

Morri mais uma vez lendo teus textos, depois vai ficar dificil de ressuscitar. beijo!

Anônimo disse...

Eu como um vampiro, um vampiro anônimo, não anêmico,achei totalmente perfeito esse devaneio inacabado...